A proposta tramita em conjunto com outras PECs que versam sobre a mesma matéria, abrindo a possibilidade de penalização de adolescentes menores de 18 anos e maiores de 16 anos, envolvidos na prática de atos infracionais graves em detrimento das medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Se aprovada, os crimes que podem ser alvo de desconsideração da inimputabilidade penal seriam os hediondos, listados na Lei nº 8.072/1990, a prática de homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e reincidência em roubo qualificado. A proposta considera a possibilidade de excluir desse rol o crime de tráfico de drogas, visto que nesses casos há que se considerar o aliciamento sofrido pelos adolescentes.
A votação da referida PEC esteve prevista para a sessão realizada no dia 1º/06/16, mas o trabalho de incidência política realizado por inúmeros atores engajados na defesa da Doutrina da Proteção Integral do Estatuto da Criança e do Adolescente contribuiu para que fossem admitidos dois requerimentos que solicitaram que fossem realizados debates com a finalidade de aprofundar o tema e orientar a votação final. Embora tenha havido resistência por parte de parlamentares que desejavam adiantar a votação, que poderá alterar a redação dos artigos 129 e 228 da Constituição Federal, foi aprovada a realização de uma audiência pública, ainda sem data definida, que poderá contar com a participação do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CONANDA), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e da Fundação Abrinq.
É importante registrar que a proposta da redução da maioridade penal apresentada como uma possível solução para o fenômeno da violência não é nenhuma novidade. Ao longo da trajetória de construção de políticas públicas para crianças e adolescentes, os apelos por medidas punitivas são recorrentes no cenário brasileiro e vem encontrando eco na atualidade frente à falácia da impunidade penal que opera em nosso país. Esse argumento é bastante frágil considerando que somos um dos países que mais encarceram no mundo. Se, em 2013, o Brasil ocupava o quarto lugar no ranking mundial de maiores populações carcerárias, em 2014, o país atingiu o terceiro lugar, passando a Rússia, com 715.655 presos, quando somados os presos nas penitenciarias e em prisão domiciliar (CNJ, 2013). Atrás apenas dos Estados Unidos e da China, o Brasil se destaca pelas denúncias de superlotação endêmica, acesso deficiente à justiça e encarceramento como regra e não exceção mesmo em caso de delitos leves (Grupo de Trabalho da ONU sobre Prisão Arbitrária, 2014), além de denúncias de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante e falta de infraestrutura dos presídios (Human Rights Watch, 2015). A população carcerária brasileira aumentou 507% entre 1990 e 2013, enquanto a taxa de crescimento da população nacional foi de apenas 36% neste mesmo período. Em números absolutos passamos de 90.000 presos em 1990, para 574.027 presos em 2013, sendo que as vagas prisionais disponíveis somam apenas 317.733[1].
O cenário nas unidades de internação para adolescentes não é muito diferente. Em 2014, foram atendidos 21.823 internos em uma rede com capacidade para 18.072. Há superlotação em 17 unidades da federação. São elas: Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Sergipe (nordeste); Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (centro-oeste); Rio Grande do Sul (sul); Acre, Amapá e Pará (norte); São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais (sudeste). A superlotação e a falta de infraestrutura adequada são responsáveis por 67,7% das causas de rebelião nas unidades de internação para adolescentes. Segundo o relatório do Conselho Nacional do Ministério Público, não está assegurado no Brasil, na imensa maioria das unidades de internação, o tratamento individualizado indispensável à ressocialização do adolescente infrator. A superlotação e a inadequação das instalações físicas, com condições insalubres e ausência de espaços físicos adequados para escolarização, lazer, profissionalização e saúde são evidentes[2].
Esse cenário já seria suficiente para tornar preocupante o fato de existirem propostas, tais como a PEC 33/2012, para regulamentação do encarceramento de indivíduos ainda mais jovens. Entretanto, quando consideramos os cortes de classe e raça existentes no perfil daqueles que cumprem medidas socioeducativas atualmente, incluindo as medidas em meio aberto, revela-se um quadro ainda mais alarmante, que criminaliza a juventude pobre e negra do país. Segundo o Levantamento Anual do SINASE, em 2013, dos 23.066 adolescentes em restrição e privação de liberdade no Brasil, 57,41% eram negros ou pardos, 24,58% brancos, 17,15% não informaram e 0,86% outros. Do total de 23.913 atos infracionais cometidos em 2013, 43% foram classificados como análogo a roubo e 24,8% foram descritos como análogo ao tráfico de drogas[3]. Alguns outros indicadores publicados pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2012, nos ajudam a compreender o perfil desses jovens: 8% dos adolescentes não eram alfabetizados, 57% declararam que não frequentavam a escola antes de ingressar na unidade, 86% deles não concluíram o ensino fundamental, 14% já tinham filhos, 47% foram criados apenas por um dos pais e 17% foram criados pelos avós. Famílias descritas como “desestruturadas”[4] e defasagem escolar, assim como o uso de substâncias psicoativas, são características marcantes do perfil dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas[5].
De acordo com a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça, menos de 1% dos homicídios cometidos no Brasil são de autoria de jovens com idade entre 16 e 18 anos: “adolescentes de 16 a 18 anos são responsáveis por apenas 0,9% do total de crimes no Brasil. O índice cai para 0,5% se for considerado somente homicídios e tentativas de homicídio”[6]. Por outro lado, pesquisas vêm sistematicamente demonstrando que as maiores vítimas da violência são os próprios adolescentes e jovens brasileiros, sobretudo negros. Dados divulgados pelo SIM/Datasus, do Ministério da Saúde, revelam que mais da metade dos 52.198 mortos por homicídios em 2011 no Brasil eram jovens (27.471, o que equivale a 52,63%), dos quais 71,44% eram pretos e pardos e 93,03% eram do sexo masculino[7].
Será que esses jovens carecem de maiores investimentos em propostas que visam reduzir a maioridade penal? Qual a real eficiência dessa proposta tendo em vista que as instituições privativas de liberdade não são capazes sequer de frear a escalada de violência e apaziguar o sentimento de insegurança social que parece atingir a sociedade brasileira?
Embora sejamos o terceiro país no ranking mundial de populações carcerárias, nossas taxas de criminalidade ainda são altas[8]. Imprensa e gestores públicos costumam repercutir com certa frequência informações de que a taxa de reincidência no Brasil é de 70%. Embora esse conceito seja amplo e dados precisos sobre o tema sejam escassos, poder público e sociedade devem reconhecer a necessidade de repensar esse tipo de política que privilegia o encarceramento maciço, a construção de novos presídios e a criação de mais vagas em detrimento de outras políticas. Torna-se cada vez mais questionável o caráter ressocializador das prisões e sua ação inibitória da prática de novos crimes. Qual o sentido de submeter indivíduos ainda mais jovens a esse sistema? Como esperar que eles sejam “reeducados” ou reintegrados a sociedade segregando-os em um microcosmo prisional com suas próprias regras e cultura?[9] A previsão de penas tem inibido a prática de crimes em nossa sociedade?
Pensar a proposta de redução da maioridade penal a partir da perspectiva dos direitos humanos de crianças e adolescentes é fundamental frente à conjuntura política conservadora instalada no cenário legislativo atual. O CIESPI/PUC-Rio vem acompanhando o desenvolvimento dessa questão há anos, tendo produzido recentemente o artigo “Redução da Maioridade Penal: uma velha questão”*, como contribuição ao debate. O artigo afirma que os estudos que analisam as raízes históricas das políticas públicas dirigidas à população infantil e adolescente no Brasil contribuem para a compreensão das respostas apresentadas pela sociedade brasileira à situação de desamparo desses indivíduos desde a formação social de nosso país. Em meio a uma trajetória em que diferentes formas de violência praticadas contra crianças e adolescentes estiveram presentes, a construção de aparatos normativos que os reconheçam como sujeitos de direitos é fundamental para a promoção de mudanças positivas ao nível das políticas e das práticas. Alterar a Constituição Federal de 1988, ferindo a Doutrina da Proteção Integral, que coloca o país em consonância com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, é como caminhar em direção ao passado.
Fonte: Raquel Duarte, Agência Nacional USP.
Texto de Juliana Batistuta Vale e Renata Mena Brasil
*Acesse aqui o artigo: Redução da Maioridade Penal: uma velha questão: http://desigualdadediversidade.soc.puc-rio.br/media/DD_15_3-Rizzini.pdf
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[1] Instituto Avante Brasil. O Sistema Penitenciário Brasileiro em 2013. Publicado em 2015. Disponível em:http://d2kefwu52uvymq.cloudfront.net/uploads/2015/02/LEVANTAMENTO-SISTEMA-PENITENCIÁRIO-2013-JUNHO2.pdf (acesso em: 11/05/2015).
[2] Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Relatório da Infância e Juventude – Resolução nº 67/2011: um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes. Publicado em 2015. Disponível em:http://www.cnmp.gov.br/portal/images/Um_Olhar_mais_Atento_09.06_ WEB.pdf (acesso em 20/02/2016).
[3] Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Levantamento Anual do SINASE. Publicado em 2013. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/levantamento-2013 (acesso em 27/09/2016).
[4] Este texto não ignora que o conceito de família seja polissêmico, o que possibilita a inclusão de diferentes arranjos em sua formação para além do nuclear, que contribuem para desconstruir a premissa de um modelo de família ideal. Ainda assim, o termo “desestruturada” foi utilizado para se referir as situações que impactam o pleno exercício de funções parentais e sociais.
[5] Conselho Nacional de Justiça. Panorama Nacional – A Execução das Medidas Socioeducativas de Internação. Publicado em 2012. Disponível em:http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf (acesso em 04/06/2016).
[6] Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2015/03/23/reduzir-a-marioridade-penal-nao-resolve-ou-voce-acredita-em-mitos/> (acesso em: 12/06/2014).
[7] WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência: homicídios e juventude no Brasil, 2014. Disponível em:http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_AtualizacaoHomicidios.pdf (acesso em 07/03/2016).
[8] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Publicado em 2015. Disponível em:http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario-Brasileiro-de-Seguranca-Publica-FSB_2015.pdf (acesso em: 04/06/2015)
[9] IPEA. Reincidência Criminal no Brasil – Relatório de Pesquisa. Publicado em 2015. Disponível em:http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal.pdf(acesso em 2015).