Abrigos e unidades de "acolhimento" para crianças e adolescentes: por que não acolhem?


Fundada em 1994, a URS Ayrton Senna tinha capacidade para receber 85 acolhidos, entretanto, foram contabilizadas mais de 140 crianças e adolescentes na instituição. Ali viviam, inclusive, adolescentes grávidas e algumas já com seus bebês. O juiz da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, determinou que as crianças e os adolescentes acolhidos na unidade deveriam ser encaminhados para outros centros, públicos ou privados.

A notícia reporta uma situação de profundo descaso para com a população “acolhida”: condições precárias de higiene, tratamento violento nas unidades, invasões de traficantes, para citar apenas algumas. No contexto atual de tanta insegurança diante do quadro político do país, é preciso cuidar para que uma denúncia grave como essa não passe despercebida e logo seja esquecida. Trata-se da interdição de uma instituição, cuja função era proteger, abrigar e acolher crianças e adolescentes; mas o que ela fazia certamente não era isso.


Este acontecimento precisa ser compreendido à luz da trajetória histórica de institucionalização de crianças. Há registros de que esta prática tem origem na Itália do século XI, quando um bispo observou que pescadores retiravam dos rios e canais crianças abandonadas, algumas ainda vivas. Ele teria sido responsável pela abertura de uma ala para internação de crianças em um dos asilos que abrigava pessoas idosas, doentes, assim como viajantes e andarilhos.


No Brasil, as instituições para órfãos, abandonados e delinquentes, de cunho religioso-caritativo e com recursos públicos, se tornaram comuns, sobretudo a partir do final do século XIX e início do século XX. Esses estabelecimentos, denominados orfanatos, dispensários, internatos de menores, entre outros, eram essencialmente destinados a crianças pobres. Entendia-se que suas famílias, frequentemente estigmatizadas como ‘viciosas’, eram incapazes de cuidar adequadamente de seus filhos.
Estas ideias e práticas permaneceram sem maiores questionamentos até a década de 1980. Elas sofreram importantes reformas a partir das mudanças políticas que possibilitaram o processo de redemocratização do país, da formulação de uma nova Constituição e da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). As instituições de grande porte, que internavam centenas de crianças por tempo indeterminado, sem qualquer consideração por seus direitos ou por seus familiares, foram paulatinamente sendo substituídas pelos atuais abrigos. Estes vieram em contraposição à noção de confinamento – a proposta passou a ser de acolher. No entanto, embora novos referenciais norteiem o acolhimento institucional hoje, há práticas abusivas que persistem, como as deflagradas no Rio de Janeiro e em diferentes partes do país.


Importante lembrar para que servem as atuais instituições de acolhimento. Em qualquer parte do mundo, há situações em que crianças e adolescentes precisam ser protegidos e o Estado é chamado a intervir. São circunstancias onde sua saúde física e/ou mental e seu bem-estar se encontram ameaçados. O acolhimento institucional é uma medida protetiva e o abrigo um local destinado a acolhê-los temporariamente. E esse tempo deve ser o menor possível, para que não se fragilizem ou se rompam os laços familiares e comunitários. Embora temporário, é preciso cuidar para que as crianças e os adolescentes abrigados sejam de fato acolhidos. É uma diretriz importante de política que todos os esforços sejam empreendidos para que a criança permaneça juntos aos seus familiares, porém isso nem sempre é possível. Nestes casos, em hipótese alguma ela deve permanecer no limbo – ou seja, numa situação ‘temporária’ que acaba se estendendo sem definição por tempo indeterminado.
Essas premissas do abrigo não vêm sendo cumpridas adequadamente, como atestam diversos depoimentos de profissionais, pesquisas e relatórios de fiscalizações às instituições, como os empreendidos pelo Ministério Público, a Defensoria Pública e o Conselho Nacional de Justiça. Dados do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas, do Conselho Nacional de Justiça, publicados em janeiro de 2016, indicaram a existência de 40.241 crianças e adolescentes de 0 a 18 anos em entidades de acolhimento institucional. Mais da metade delas se encontra na região Sudeste. Um ponto bastante importante a se destacar é que 48% desses acolhidos eram crianças com até 11 anos de idade (CNJ, 2016).


O que essas informações nos dizem? Qual o cerne da questão?


As pesquisas vêm sistematicamente apontando ao longo dos anos que estamos diante de um problema que se relaciona à falta de cuidados básicos adequados no contexto familiar e que não será resolvido via institucionalização. Frequentemente as crianças acabam abrigadas devido a situações de abandono, abuso e violência. A causa mais comum alegada para o acolhimento institucional é genericamente classificada como “negligência familiar”. As crianças, assim como seus familiares, vivem em contextos onde são habituais as seguintes condições: falta de recursos materiais; escassez de serviços básicos, como moradia, saúde e educação de qualidade; condições precárias de saneamento e higiene; desemprego e diversas formas de violência, inclusive doméstica. Problemas no campo da saúde mental, muitas vezes, sequer diagnosticados, combinados com uso abusivo de álcool e outras substâncias corroboram para a rota da criança para uma instituição.


Profissionais que atuaram na Unidade de Reinserção Social Ayrton Senna, que está sendo interditada no Rio de Janeiro, vêm há anos apontando diversas lacunas no atendimento aos adolescentes acolhidos. Eles relatam que as negligências da instituição estão relacionadas a múltiplos fatores, principalmente ao desinteresse dos governantes e gestores locais e à ausência de recursos para capacitar e dar continuidade aos projetos desenvolvidos pelos profissionais envolvidos nas ações sócioprotetivas. Em relação às mães adolescentes acolhidas, os profissionais afirmam que durante muitos anos têm sido solicitado um novo espaço para garantir a proteção dessas jovens com seus filhos e a implementação da modalidade de acolhimento institucional denominada "República", prevista nas políticas públicas em curso no país. O objetivo é dar continuidade ao processo de cuidado e suporte às jovens mães, sobretudo nos casos em que elas não têm condições de retornar à família de origem com seus bebês. A cidade do Rio de Janeiro permanece com essa grave lacuna no atendimento a jovens pais e seus filhos que se encontram em situações de profunda vulnerabilidade (depoimento em entrevista, Rio de Janeiro, janeiro de 2016).


Essas são situações complexas que exigem múltiplas ações e demandam tempo e recursos. São crianças e adolescentes que vivenciam situações traumáticas e grande sofrimento psíquico, o que agrava a denúncia sobre o quadro de violência, crueldade e descaso reportado na unidade de acolhimento institucional do Rio. Não basta fechar uma ou outra instituição e manter a venda sobre os olhos e o silêncio em relação ao problema como um todo.


Que os referencias de direitos humanos e de cuidado ético que criamos nas últimas décadas nos guiem. Há um grande número de profissionais comprometidos com esse pensar e agir. Temos, inclusive, no Brasil uma história de práticas inovadoras e competentes de norte a sul. Que essa história prevaleça e que todos os serviços de acolhimento no país sejam alinhados de acordo com a ética e a amorosidade do cuidado que as crianças e adolescentes merecem.


Texto de Irene Rizzini, Professora da PUC-Rio; Diretora-Presidente do CIESPI.
Referências
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Relatório da Infância e Juventude – Resolução nº 71/2011: um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no país (Publicado em 2013). Link: http://www.cnmp.gov.br/portal_2015/images/stories/Destaques/Publicacoes/Res_71_VOLUME_1_WEB_.PDF (acesso em 16/02/2016).
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas. Link: http://www.cnj.jus.br/cnca/publico/ (acesso em 06/01/2016).

Imagem: Caio Barreto Briso – O GLOBO
“Juiz determina fechamento de centro de acolhimento em Vila Isabel” (O Globo, 15 de março de 2016, p.11.